terça-feira, 31 de julho de 2012

Memórias de uma criança



Nas memórias longínquas da minha infância (nos anos 70/80), procurei episódios passados na escola primária e na minha aldeia de Sanfins.
Era uma criança com 6 anos, franzina, vestindo os trapos requintados que a moda da vida impunha. Apesar da tenra idade dedicava-me já à labuta nos campos, ajudando a minha mãe a cultivar os terrenos agrícolas. Desde os produtos hortícolas, ao cultivo da oliveira, até à vinha de onde extraiamos o vinho morangueiro, era uma vida dura. Tinha ainda o moinho que estava a cair em desuso, mercê do aparecimento das indústrias de moagem, acabando por desaparecer, estrangulando os moleiros, fazendo-os procurar novas formas de sustento para as suas famílias.
Mas voltando às minhas memórias, entrei para a escola e a minha primeira professora chamava-se Raquel. Na verdade não gostava muito dela, não me perguntem porque, mas acho que o sentimento era recíproco. Na verdade da parte dela entendo-a, pois eu era um diabinho que só estava bem a pregar partidas, juntamente com outros colegas da escola. 
Recorda-me uma vez ter colocado um lagarto na gaveta da professora juntamente com o Toni (o filho do ti Abel). Quando ela abriu a dita gaveta ia tendo um problema cardíaco, felizmente não passou de um susto. Claro que fomos logo castigados. Lembram-se da famosa régua? Pois fiquei com as mãos a arder e cheio de dores (diga-se que foram bem merecidas). Nem a nossa esperteza nos livrava às reguadas da professora.
De facto era um miúdo afoito, cheio de energia, mas a precisar de boas maneiras, não que fosse mal-educado, mas a própria vida que versava não o permitia. Mas à data o carácter das pessoas e os restantes valores eram limados através da dureza dos campos e da própria vida que nos esculpia e fazia homens.
(Escola Primária de Sanfins, Valpaços)

Era revoltado, sim é verdade. Era órfão e sentia a falta do meu pai, apesar de o não conhecer. Já me orgulhava em saber quando a minha vizinha (Ti Isolina) e outras pessoas mais velhas diziam que o meu pai havia sido um homem honrado de bem e trabalhador. No entanto, não tinha a quem chamar esse nome (e tanto que precisava de um “PAI”), nem tinha quem me desse carinho, que as crianças tanto carecem. No entanto não me queixo, pois sempre tinha uma côdea de pão e uma sopa para comer, que era aliás essa a maior preocupação da mulher que me criou e tão bem me educou.
A minha mãe vivia perdida nos seus pensamentos, compenetrada nela própria não conseguindo oscular o que lhe toldava a alma. Que tempo tinha para os filhos? Precisava de trabalhar e alimentar os seus rebentos. A sua face denotava mágoa, tristeza mas uma infindável vontade, uma mãe-pai que criou os filhos de uma forma que orgulharia qualquer fidalgo de sangue-azul.
No entanto nunca entendi os seus sentimentos, eram demasiado complexos para uma criança de tão tenra idade.
Quanto à falta de um pai, sentia-a imenso, pois o que mais dói era ver que os colegas de escola tinham por vezes os pais a acarinha-los e eu tinha ciúmes deles. É verdade! Mas numa criança de tão tenra idade, sem luxos, sem conforto, acho que se percebe e é desculpável.
O que mais gostava na altura na escola era a hora do recreio, não era nada dedicado á escola. Qualquer coisa me distraia, o simples passar de um rebanho era motivo para ir atrás dele e perder as aulas, pois a visão das ovelhas fascinava-me. Adorava ver o rebanho nos pastos ruminando calmamente sem preocupações, com o que os rodeava. Além disso tinham os seus anjos protetores de quatro patas e os pastores, que os protegiam dos lobos que os circundavam.
Bom, mercê do meu pouco interesse pela escola, tive o que merecia, acabei por reprovar o primeiro ano. A minha mãe puniu-me severamente, pois dizia-me que apesar de ser pobre e honrado, tinha obrigação moral para comigo próprio e para com ela de melhorar a vida. Instava-me assim a dedicar-me à escola para um dia deixar aquela vida de labuta. Não que me possa queixar muito, pois meus irmãos tão novos fartavam-se de trabalhar.
Nos anos seguintes apesar das imensas tropelias dediquei mais tempo à escola e apesar de não serem famosas as minhas classificações, deu para ir passando de ano, conciliando a escola com o trabalho nos campos. Uma das coisas que mais gostava de fazer no verão era regar as batatas. Dava-me imenso prazer brincar com os regos de água, como se fosse um deus com o poder de controlar as correntezas dos rios. Observava atentamente os pequenos montículos formados e os insetos que a água afugentava à sua frente. 
Por vezes o meu tio Manuel deixava-me montar o cavalo que prendia junto à sua casa, passando a corda pela ferradura cravada na parede. Nessas alturas eu e o Normando passávamos momentos bem agradáveis imaginando-nos cowboys do oeste americano, montados no animal que cavalgava alegremente pelas padarias. Os pensamentos de uma criança não tinha qualquer limite ... os sonhos eram tão doces! Eram momentos de acalmia e de paz numa vida rotineira mas apesar de tudo, feliz!
(Eu e o Normando)

Sou um apaixonado saudosista, do tempo das brincadeiras ao ar livre onde reinava o peão; as corridas; as escondidas; as lutas no recreio e claro as nódoas negras. Hoje qualquer ferimento por mais insignificante que seja corre-se logo a perguntar “meu filho magoaste-te muito, queres ir ao hospital”. Na verdade exagera-se imenso, colocando-se os filhos numa redoma de vidro, que nada os ajuda a preparar para a luta que os espera na selva que é o nosso mundo, ladeado de compadrios onde o mérito está a ser sorvido e a dar lugar ao chico-espertismo.
Mas passando essa fase, naquela altura o nosso limite era o céu. Corríamos alegremente pelas encostas do rio, saltando de pedra em pedra, cantando, gritando, extravasando os sentimentos. Usávamos as pedras para brincar aos cowboys usando paus que moldávamos simulando tratar-se de pistolas (talvez tenha vindo daí a vontade de ingressar nas Forças Armadas).
Depois de esgotada tanta energia, passávamos pelos campos onde comíamos umas uvas; frutas ou que estivesse à mão. Claro que os nossos pais ou os lavradores da aldeia quando nos viam a comer alguma fruta, ralhavam connosco de uma forma benevolente.
Para terminar em beleza, no verão tomávamos um banho no rio, aproveitando para tentar apanhar uns peixes ou descobrir os ninhos dos pássaros que por ali esvoaçavam alegremente. Na verdade nessa matéria não era lá muito bom!
A vida era contagiante quando brincava com os amigos da aldeia (O Toni; Óscar; Miguel; Paulo Jorge; Jorge o “Gordo”; Tina; Ilda; Alzenda; Lavínia; Anabela; Jaime e tantos outros da minha geração), os sorrisos eram puros e verdadeiros. Era uma inocência pura não corrompida pela maldade dos homens, onde a convivência; a partilha a amizade pura sem interesse, era norma.
Mato agora as saudades desses tempos, através da escrita ou quando me desloco à aldeia, onde revivo memórias, por vezes com lágrimas de alegria que me acariciam a face e me purgam a alma!


João Salvador – 31/07/2012


segunda-feira, 30 de julho de 2012

Crónica da vida de um Pastor, na visão de quem nunca o foi



Desde muito novo que admiro os pastores e a sua forma de estar e de ser, pois tive a oportunidade de privar com eles durante parte da minha vida – a pastorícia é em si um modo de estar na vida.

Nas aldeias transmontadas, não há tempos muito remotos era uma profissão considerada (e sempre o será para quem conhece a dureza de tal vida e o brio de tal gente) e com alguns seguidores, usualmente uma profissão que poder-se-ia considerar familiar.

Quem não se lembra (quem ai mora na aldeia tem ainda esse prazer), de passar pelos campos verdejantes e ver no horizonte ali embrenhados naquela cena bucólica pintada pelos recortes do céu, o pastor com o seu típico cajado contemplando o céu, ladeado pelas suas ovelhas sempre acompanhadas pelos cães que as guardam?

Ovelhas pacificamente ruminando, engordando sem conhecer o destino, num cenário ordeiro e belo entretidas em consumir as herbáceas que encontram nos férteis solos.



Ovelhas cumprindo religiosamente as orientações direcionais do pastor, que as chama na sua inconfundível voz, que corta pelas serras e montes, premiando-as com um delicioso “petisco”.

Quem não se recorda dos carismáticos “Ti Alípio Cavaleiro” ou do “Ti Américo Cavaleiro”, pastores de uma vida. Homens de renome quase intemporal, fazendo ainda jus a tão nobre actividade, no alto dos seus muitos anos já vividos.

(Ti Alípio Cavaleiro)

Garbosos na profissão que abraçaram desde à muito, onde sempre buscaram o sustento para si e para os seus.
Conhecedores como ninguém dos mais faustosos pastos de erva tenra que irradia uma fulgência aprimorava na primavera, pigmentada pelas flores brancas e amarelas que ondulam as suas pétalas ao vento, numa dança que nos hipnotiza e nos faz sonhar.

Brinda o gado com tais mantos de belas e suculentas pastagens. O pastor no seu silêncio, cortado pelo chilrear dos pássaros ou pelo latir dos cães é o verdadeiro guardião das ovelhas, mas também das paisagens naturais que embelezam o nosso Nordeste Transmontano.

O pastor é o verdadeiro cientista e estudioso das bucólicas paisagens tantas vezes enaltecido e declamado nos poemas vertidos em palavras pelo nosso famoso conterrâneo Miguel Torga. Cenário onde se sente imbuído de saber e de inspiração com a qual é enamorado pelas próprias cores; sons e aromas dos montes que percorre sem descanso.

Vivem abrigados e protegidos por um céu de estrelas que lhes revela todos os seus segredos, mas atentos aos predadores naturais que lhes podem roubar o sustento.

Nas brisas primaveris, quando os raios de sol incidem sobre os campos, aquecendo-os, tosquiam-se as ovelhas aligeirando-as dos seus mantos de lã, usadas outrora para a feitura de meias; cobertores e outras peças de indumentária, caídas agora em desuso, para nossa infelicidade. Quem não se recorda das anciãs (ou nem tão anciãs assim – as nossas mãe em tempos ainda não muito recuados o faziam, lembram-se?) a aproveitar a lá, após a prepararem para fazerem depois as meias grossas que nos aqueciam os pés, auxiliando-nos contra o rigoroso frio de inverno?

Era feita a tosquia de forma artesanal com auxílio à tesoura e à mestria do tosquiador, contratado para o efeito ou feita pelo próprio pastor, também esse ofício dotado agora de modernidade, perdendo o seu misticismo, arte e perícia das mãos que cortavam a lã e lhe davam vida ainda que doutra forma.

Honrosa é a tua profissão ó pastor, que infelizmente tende a esfumar-se assombrada pelo passar dos tempos, engolida pela modernidade – para nosso desalento!

Tal cenário é dantesco mas real, mas nunca as memórias serão apagadas dos nossos livros e das vivências de quem privou com tal ancestral conhecimento pastoril de tão nobres senhores.

Ainda teimam alguns em manter a tradição e segui-la, como é o caso do Alcino que se dedica também à pastorícia e a quem tiro o chapéu!


(Alcino pastor)

Obrigado aos pastores “Ti Alípio”; “Ti Américo”; ao Alcino e a tantos outros, por nos deixarem o seu legado (aos mais novos pastores por o continuarem); a sua história e as suas memórias.


João Salvador – 15/05/2012

(Ao Ti Alípio; ti Américo ao Alcino e a tantos outros pastores)

Crónicas da vida dos Moleiros



Viviam no moinho junto ao rio, acariciados pelas águas gélidas do inverno e amenas do verão, dependente dos caprichos da natureza.
O fantasma de um verão seco perseguia a mente do moleiro, obrigando à paragem do moinho, pois imperando um calor sufocante e continuado os rios e ribeiros secam deixando as mós paradas.
Também o inverno rigoroso e chuvoso o apavorava, receando as inundações do seu moinho e a perda do seu sustento, pois até as hortas poderiam ficar perdidas.
O moinho era no entanto o seu recanto, o palácio que esculpiu, onde era rei, reinando sobre a farinha moída, o ouro por si produzido que alimentava as bocas da família e dos seus respeitados fregueses.
Eram constantes as idas ao açude, que percorria pelas ladeiras ou pelos caminhos junto ao rio, cujo chão era já como um irmão. No açude tapava os buracos com panos velhos e pedras, provocados pelas ratazanas e pelo fluxo das águas límpidas, pois sem água o moinho era um simples espectro do nada, uma construção improdutiva.
Encaminhavam a correnteza pela levada feita pelos seus antepassados ou por si que mantinha limpa. Afluía a água para o cubo, controlando o fluxo pela buzileira que abria ou fechava para controlar a força da corrente. Era esse fluxo que movia as pás, ligadas a um eixo de madeira. As mós moviam-se assim com uma cadência ritmada mas serena, sempre vigiada e controlada pelo olhar atento do moleiro.
As ferramentas utilizadas ainda que rudimentares eram muito úteis. Construía a maquinaria que necessitava para mover o mecanismo que lhes dava o sustento. Apenas as mós as encomendavam nas pedreiras, que depois trabalhavam horas a fio, acariciando-as com o rude “pico” de ferro.
Estava o moleiro sujeito a uma vida de trabalho incessante (carregando os sacos, todo enfarinhado, moendo, transportando … lutando) onde o horário era utópico, iniciando aos primeiros raios de luz, terminando não com o por do sol, mas muitas vezes à luz das velas ou da candeia alimentada a azeite ou a petróleo. Era preciso trabalhar, moer os alqueires trazidos por si ou pelos fregueses. Não os podia desapontar. Cada encomenda era um fio de vida na sustentação da família, que queria ver minimamente nutrida.
O descanso era escasso a vida era muito dura, como aliás o eram a maior parte das profissões nas aldeias do Nordeste Transmontano nos anos 60 a 80 (período a que aqui me reporto), o que levou ao abandono das graciosas e belas paisagens das nossas terras e ao rumar a novas vidas no litoral português ou no estrangeiro.
Periodicamente o moleiro picava as mós tornando-se estas mais eficazes na moagem do cereal (trigo; pão; milho; etc) que lhe era trazido pelo freguês (normalmente eram lavradores), também este sujeito a uma vida de labuta onde o descanso era um luxo.
Quantas vezes o moleiro não tinha ele próprio que fazer o transporte dos alqueires (para quem não se lembra cada alqueire tem 12 Kg) de cereal já transformado em farinha, pelas aldeias em redor, ganhando assim mais uns honrosos tostões. Percorria sinuosos e tortuosos caminhos. Seguro no entanto que o esforço seria recompensado com o agradecimento dos filhos e com o carinho da mulher (quando havia tempo para isso).
Os moleiros percorriam incessantemente esses trilhos sulcados pelas intempéries do inverno e castigados pelo calor do verão, transportando os sacos de farinha (precioso produto fruto do seu trabalho) no burro ou na mula, seus companheiros na vida diária.
Não se queixava, o moleiro. Não baixava os braços. As obrigações da vida não o deixavam desistir, tinha que trabalhar para alimentar os seus filhos, cujo destino, muitas vezes, seria o de seus pais, também eles serem moleiros.
Além disso tinha os encargos com o sustento dos animais: palha, feno, milho, ferragem, concerto das albardas, de cordas, iluminação (azeite e petróleo), entre outras despesas.
O seu alento à chegada aumentava com a visão dos seus filhos e da mulher que o aguardava, também eles trabalhando incessantemente quer no moinho quer nas hortas que ladeavam o moinho, onde plantavam as cebolas (quem não se lembra de arrancar a cebola da terra que depois de limpa e cortada em quatro era polvilhada de sal e consumida crua? – pode parecer estranho mas na altura era um pitéu para muita gente) e outros produtos hortícolas. Os alimentos dali retirados eram um complemento, ainda que lhes faltasse a carne e o peixe em grande parte das refeições. Ainda assim eram felizes, ao seu jeito …
Na verdade no que concerne à alimentação direi que nem sempre era certa, nem de qualidade. Os moleiros comiam mal e irregularmente devido ao modo de vida que eram obrigados a ter: percorriam grandes distâncias, contactavam com muitas pessoas, estavam sujeitos a determinadas condições naturais, satisfação de certos compromissos, que os levava à pernoita em vários locais, sem um mínimo de condições. Assim, viam-se obrigados a passar dias sem uma refeição completa e tomada a horas.
Camuflado pelas farinhas moídas, o moleiro, via os seus filhos mais pequenos a brincar alegremente, apesar da dureza de tal vida, rodopiando pelas saías da mãe, que não abrandava o seu ritmo de labuta.
Não tinham grandes confortos, dormindo em colchões de palha, dispostos no solo ou em plataformas por si construídas, comendo o que das maquias tiravam (normalmente a maquia era 1,5 Kg de cada alqueire) e da terra extraiam.
Infelizmente tão ancestral profissão, tal como a conheci, praticamente desapareceu, ficando os seus moinhos, muitos deles já devolutos, outros felizmente recuperados, continuando as águas a correr caprichosamente pelas levadas que a transportam ao cubo, agora mais pachorrentas, impedidas pelos silvados e pela acumulação dos sedimentos.
Tinham vida dura os moleiros, mas viviam honrosamente; orgulhosos e felizes da profissão que abraçaram!


João Salvador – 24/07/2012

(Uma homenagem aos moleiros de Sanfins – em especial aos meus pais “João Moleiro” e à “Clara Moleira”)