Viviam
no moinho junto ao rio, acariciados pelas águas gélidas do inverno e amenas do
verão, dependente dos caprichos da natureza.
O
fantasma de um verão seco perseguia a mente do moleiro, obrigando à paragem do
moinho, pois imperando um calor sufocante e continuado os rios e ribeiros secam
deixando as mós paradas.
Também
o inverno rigoroso e chuvoso o apavorava, receando as inundações do seu moinho
e a perda do seu sustento, pois até as hortas poderiam ficar perdidas.
O
moinho era no entanto o seu recanto, o palácio que esculpiu, onde era rei,
reinando sobre a farinha moída, o ouro por si produzido que alimentava as bocas
da família e dos seus respeitados fregueses.
Eram
constantes as idas ao açude, que percorria pelas ladeiras ou pelos caminhos
junto ao rio, cujo chão era já como um irmão. No açude tapava os buracos com
panos velhos e pedras, provocados pelas ratazanas e pelo fluxo das águas
límpidas, pois sem água o moinho era um simples espectro do nada, uma
construção improdutiva.
Encaminhavam
a correnteza pela levada feita pelos seus antepassados ou por si que mantinha
limpa. Afluía a água para o cubo, controlando o fluxo pela buzileira que abria
ou fechava para controlar a força da corrente. Era esse fluxo que movia as pás,
ligadas a um eixo de madeira. As mós moviam-se assim com uma cadência ritmada
mas serena, sempre vigiada e controlada pelo olhar atento do moleiro.
As
ferramentas utilizadas ainda que rudimentares eram muito úteis. Construía a
maquinaria que necessitava para mover o mecanismo que lhes dava o sustento.
Apenas as mós as encomendavam nas pedreiras, que depois trabalhavam horas a fio,
acariciando-as com o rude “pico” de ferro.
Estava
o moleiro sujeito a uma vida de trabalho incessante (carregando os sacos, todo
enfarinhado, moendo, transportando … lutando) onde o horário era utópico,
iniciando aos primeiros raios de luz, terminando não com o por do sol, mas
muitas vezes à luz das velas ou da candeia alimentada a azeite ou a petróleo.
Era preciso trabalhar, moer os alqueires trazidos por si ou pelos fregueses.
Não os podia desapontar. Cada encomenda era um fio de vida na sustentação da
família, que queria ver minimamente nutrida.
O
descanso era escasso a vida era muito dura, como aliás o eram a maior parte das
profissões nas aldeias do Nordeste Transmontano nos anos 60 a 80 (período a que
aqui me reporto), o que levou ao abandono das graciosas e belas paisagens das
nossas terras e ao rumar a novas vidas no litoral português ou no estrangeiro.
Periodicamente
o moleiro picava as mós tornando-se estas mais eficazes na moagem do cereal
(trigo; pão; milho; etc) que lhe era trazido pelo freguês (normalmente eram
lavradores), também este sujeito a uma vida de labuta onde o descanso era um
luxo.
Quantas
vezes o moleiro não tinha ele próprio que fazer o transporte dos alqueires
(para quem não se lembra cada alqueire tem 12 Kg) de cereal já transformado em
farinha, pelas aldeias em redor, ganhando assim mais uns honrosos tostões.
Percorria sinuosos e tortuosos caminhos. Seguro no entanto que o esforço seria
recompensado com o agradecimento dos filhos e com o carinho da mulher (quando
havia tempo para isso).
Os
moleiros percorriam incessantemente esses trilhos sulcados pelas intempéries do
inverno e castigados pelo calor do verão, transportando os sacos de farinha
(precioso produto fruto do seu trabalho) no burro ou na mula, seus companheiros
na vida diária.
Não
se queixava, o moleiro. Não baixava os braços. As obrigações da vida não o
deixavam desistir, tinha que trabalhar para alimentar os seus filhos, cujo
destino, muitas vezes, seria o de seus pais, também eles serem moleiros.
Além
disso tinha os encargos com o sustento dos animais: palha, feno, milho,
ferragem, concerto das albardas, de cordas, iluminação (azeite e petróleo),
entre outras despesas.
O
seu alento à chegada aumentava com a visão dos seus filhos e da mulher que o
aguardava, também eles trabalhando incessantemente quer no moinho quer nas
hortas que ladeavam o moinho, onde plantavam as cebolas (quem não se lembra de
arrancar a cebola da terra que depois de limpa e cortada em quatro era
polvilhada de sal e consumida crua? – pode parecer estranho mas na altura era
um pitéu para muita gente) e outros produtos hortícolas. Os alimentos dali
retirados eram um complemento, ainda que lhes faltasse a carne e o peixe em
grande parte das refeições. Ainda assim eram felizes, ao seu jeito …
Na
verdade no que concerne à alimentação direi que nem sempre era certa, nem de
qualidade. Os moleiros comiam mal e irregularmente devido ao modo de vida que
eram obrigados a ter: percorriam
grandes distâncias, contactavam com muitas pessoas, estavam sujeitos a
determinadas condições naturais, satisfação de certos compromissos, que os
levava à pernoita em vários locais, sem um mínimo de condições. Assim, viam-se
obrigados a passar dias sem uma refeição completa e tomada a horas.
Camuflado
pelas farinhas moídas, o moleiro, via os seus filhos mais pequenos a brincar
alegremente, apesar da dureza de tal vida, rodopiando pelas saías da mãe, que
não abrandava o seu ritmo de labuta.
Não
tinham grandes confortos, dormindo em colchões de palha, dispostos no solo ou
em plataformas por si construídas, comendo o que das maquias tiravam
(normalmente a maquia era 1,5 Kg de cada alqueire) e da terra extraiam.
Infelizmente
tão ancestral profissão, tal como a conheci, praticamente desapareceu, ficando
os seus moinhos, muitos deles já devolutos, outros felizmente recuperados,
continuando as águas a correr caprichosamente pelas levadas que a transportam
ao cubo, agora mais pachorrentas, impedidas pelos silvados e pela acumulação
dos sedimentos.
Tinham
vida dura os moleiros, mas viviam honrosamente; orgulhosos e felizes da
profissão que abraçaram!
João
Salvador – 24/07/2012
(Uma homenagem aos moleiros de Sanfins – em especial aos meus pais “João Moleiro” e à “Clara Moleira”)
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