sábado, 21 de dezembro de 2013

Episódios da meninice I - Bicicleta “nova”

Haviam terminado as aulas na aldeia, abrindo-se um radioso sorriso nas faces das crianças que polvilhavam agora o recreio escolar.

As brincadeiras intensificaram-se e trocavam-se ideias do que seriam os planos para os próximos dias que se avizinhavam, combinando-se algumas traquinices próprias das crianças de tenra idade.

Avizinhava-se o Natal as famílias iniciavam já no interior os preparativos para as festividades natalícias, adiantando as lides agrícolas, nas quais as crianças também participavam.

Nessa altura a apanha da azeitona era e ainda é uma das tarefas mais prementes para os habitantes locais, que buscavam o sustento nas férteis terras com que foram bafejados pelo ser iluminado.

A azáfama das matanças do porco, o fumeiro, a busca de lenha para a fogueira de Natal, tudo se resumia às festividades natalícias vividas não só em família mas também em comunidade, visto que o elo de ligação entre os residentes sempre foi muito forte e felizmente ainda se verifica em muitas aldeias do interior onde todos se conhecem, apesar de já contaminadas pelo consumismo desenfreado e pela perda de valores humanos, mas como disse onde ainda resistem as palavras “solidariedade” e “amor pelo próximo”.
Não obstante essa azáfama, as crianças tinham sempre tempo para brincar e tudo servia como pretexto para isso. 

Desde o gelo que se formava na estrada que servia para os mais afoitos e corajosos fazerem dela uma pista de gelo, deslizando e caindo, mas sempre com gargalhadas à mistura, apesar das mazelas contraídas; desde os recantos da aldeia que serviam para o jogo das escondidas, até às bicicletas sem pneus que serviam para brincar com as rodas empurradas pelas ganchetas, julgando-se as crianças grandes velocistas, imaginando-se em um qualquer circuito de velocidade, o importante era afinal a diversão divagando a sua mente por todo um mundo imaginário, doce e belo onde apenas existia tudo o que era bom.


Recordo-me de um desses episódios da minha meninice, onde por um mero acaso encontrei uma bicicleta nas escadavadas, numa lixeira junto á Estrada Nacional a qual não estava munida de travões nem de pneus, estando os aros à vista e alguns raios da roda frontal partidos.


(Ponte das Escadavadas)

O próprio guiador estava torto, nada que assusta-se uma criança sedenta de aventura e adrenalina. Logo peguei nela, imaginando ter na minha posse uma bicicleta nova oferecida no Natal por um familiar mais abastado que ma havia oferecido por ser uma criança bem comportada, o que nem sempre era o caso.

Visto que não tinha travões, nem pedais, além de estar desprovida de pneus o ideal seria aproveitar as descidas (pensava eu na altura) e ganhar velocidade até atingir um patamar plano, sem necessitar de grande aparato para parar a bicicleta, bastando para isso a sola das sapatilhas para fazer abrandar o aro das rodas.

Incentivado pelos amigos da aldeia, logo montei aquela beleza que rugia freneticamente perante a minha coragem e logo iniciei a aventura, impulsionando a bicicleta que ganhou velocidade. Durante uns bons metros avancei maravilhado, sentindo o ar cortante do inverno que acariciava a minha face gelando-a, mas isso apenas me dava mais prazer e gosto pela aventura.

A paisagem passava mais rápida, tornando-se por vezes lenta, permitindo-me observar as suas cores de uma outra perspectiva e com um deleite que apenas uma criança por vezes louca sabe explicar. Uma loucura tão doce, uma meninice traquina mas deliciosa!

Percorridos vários metros, aproximava-me já da escola, quando repentinamente os raios das rodas foram cedendo, tentando travar com as solas já gastas o que não surtiu efeito, perdendo o controlo da bicicleta, acabando por embater num poste de cimento, ferindo-me ligeiramente.

Apesar do susto e de alguns hematomas contraídos, tive sorte pois cai num terreno contíguo lavrado e macio, o que me evitou mazelas de maior. Mas o que na verdade me feriu imenso foi ver a minha bicicleta “nova” completamente danificada e agora sem poder ser utilizada – como amei aquele minha bicicleta despida de pneus.

Foram bons aqueles momentos que antecederam a minha queda, foi bom ser menino, apesar dos joelhos esfolados e da reprimenda que se seguiu da minha mãe, que me alertou para o perigo da minha brincadeira.

Tinha razão é certo, mas foi tão bom aquele instante em que participei na Volta a Portugal em bicicleta, ainda que apenas por alguns momentos.

Pequeno lapso temporal em que ganhei uma etapa ao Joaquim Agostinho.
Soube bem ser criança e rever esses momentos vividos numa aldeia que amo e que estará sempre na minha memória e no meu coração.
      


(Fotos antigas – Memórias da meninice)

Amo as minhas raízes, respeito as memórias do passado e idolatro a minha terra … 

Assim amassem a sua terra e as suas gentes aqueles que nela habitam e a espezinham!

Feliz Natal!


João Salvador – 21/12/2013