“Por
alturas do Natal, começa a matança. Ao romper da manhã, a paz de cada povoado é
subitamente alarmada. Um grito esfaqueado irrompe do silêncio. Dias depois
desmancha-se a bizarma e um pálio de fumeiro cobre a lareira”
Miguel
Torga - in “PORTUGAL”, Coimbra 1950
Após a matança
do porco em Dezembro, estava na altura de retirar o estrume da loja que
cuidadosamente amontoava num monte devidamente construído, como se de uma
muralha se trata-se evitando a sua queda. Ali ficava o estrume durante uns dias
libertando cheiros fétidos e odores nada agradáveis, libertando vapores
entrando em “fermentação”.
(retirada do estrume com auxilio a uma forquilha)
Esse estrume
era depois usado para fertilizar as terras de meus pais, sendo transportado
através dos animais de carga ou como o foi posteriormente no tractor do Sr.
Albino (ou “ti” Albino como
carinhosamente chamamos às pessoas mais velhas), pessoa da aldeia que muito
admiro e respeito.
No campo era
descarregado em pequenos montículos espalhados por todo o olival ou em zona
específica para se fazer posteriormente a plantação de batatas ou outras
culturas.
(estrume já acondicionado no campo em montículos)
Com a loja (ou
estrumeira) limpa estava tudo pronto para receber um novo animal, desta vez foi
uma porca que foi chegada ao porco e estava prenha, o que prometia entrada de
dinheiro que bem falta fazia, através da venda de leitões. O ano anterior tinha
sido proveitoso (os presuntos eram de
qualidade, a carne saborosa e o fumeiro feito pelas mão da minha mãe era algo
de divinal) e felizmente conseguiu-se investir um pouco mais, coisa rara
naquela época.
Roncava cedo a
porca e os quatro leitões, suplicando pelo alimento que estava já a ser
preparado nos potes de ferro que a minha mãe tinha posto ao lume. Bocados de
beterraba; batatas; couves e repolhos que havia trazido no dia anterior do
moinho, onde tínhamos plantado verdura para dar aos porcos.
(Leitão)
Cuidadosamente
com auxílio a um pano velho a minha mãe despejou todo o conteúdo da “lavagem”
pra um balde de plástico, acrescentando um pouco de farinha para alimentar a
porca e os leitões, como o fazíamos diariamente, cevando-os para um destino
longínquo nas suas curtas vidas.
Antes de ir
para a escola, diariamente tinha essa tarefa de alimentar os porcos. Levava o
balde com os vegetais cozidos, juntamente com os restos da comida sobrante
(coisa rara naqueles tempos de criança) e deslocava-me à loja para alimentar os
animais.
Quando deitava
a comida na pia de pedra, a porca apressava-se a lambuzar-se comendo
apressadamente a atabalhoadamente como se fosse o ultimo dia da sua vida.
Era
para ela um pitéu a comida cozida nos potes, mal sabendo que dentro de alguns
meses seria morta e a sua carne usada para fazer os presuntos; fumeiro (alheiras; salpicões; chouriças; sangueiras,
etc), servindo para confecionar o belo cozido á portuguesa recheado com
muita carne de porco, regado por azeite acompanhado por batatas e legumes
variados (couve ou repolho e cenoura).
Além disso seria usado também para fazer o folar tradicional de Trás-os-Montes,
o qual leva carne de porco.
(Cozido à portuguesa)
(Folar transmontano)
Regalava-me
ver aquele frenesim dos leitões a lutar por um lugar privilegiado para mamar o
leite quente fornecido pela mãe. Eram de facto muito bonitos, pena o destino
que também os esperava, mas são parte da alimentação humana, que se há-de
fazer, não me estou a ver a comer só vegetais. Um deles chamava-lhe o
pintarolas, pois tinha várias manchas em forma de salpicos de tinta preta; o
outro era o pitosga, andava sempre a piscar os pequenos olhitos. Quando se é
criança repara-se em tudo!
(Leitões a mamar)
Depois de alimentar
a porca tratei de “fazer a cama”, visto que o estrume acumulava-se e era
necessário acomodar a criação. Fui ao telheiro e levei vários “manhuços” de
palha que espalhei de uma forma mais ou menos uniforme para que os animais
estivessem mais confortáveis e naturalmente através dos seus excrementos
sólidos e líquidos fizessem mais estrume.
Como já tinha
pouca palha, a minha mãe mandou-me ao pinhal do Vale de Corças, “arrebanhar” as
agulhas com auxílio do engaço (ou ancinho
como alguns conhecem). Preocupava-me em deixar o terreno limpo, acumulando
em montículos médios as agulhas dos pinheiros e os restos de algumas giestas e
arbustos, que posteriormente transportaria em sacos para casa ou na carroça que
seria aparelhada ao cavalo. Por vezes o transporte era feito em cargas de três
sacos, que colocava no cavalo ou no burro, aparelhando previamente os animais
com a albarda, apertando bem a cilha. Depois era só acomodar a carga, aperta-la
devidamente com o arrocho e já estava. Chegado a casa descarregava debaixo do
telheiro, acumulando o mais possível para quando fosse necessário “fazer as
camas aos animais”.
Outra das
tarefas que me ocupava juntamente com a minha mãe, era a da procura de alimento
para os porcos. Desde nabos; aboboras; maças; peras; e outra fruta (impróprias para consumo humano) erva variada
até folhata (folhas dentadas) que
recolhia dos Negrilhos ou Ulmeiros como também são conhecidos.
(nome cientifico: Ulmus Salisb. Syn. Ulmus minor Miller).
Era um
alimento que os animais também gostavam, tratando-se de mais um suplemento alimentar para os animais.
Dizia a minha mãe que ficavam com a carne mais saborosa e magra não acumulando
tanta gordura.
Reconheço que
me custava bastante separar-me dos leitões, mas era de dinheiro que se tratava
e não me podia dar a muitos luxos. Até a minha cadela laica se havia afeiçoado
ao Pintarolas e ao pitosga, latindo desalmadamente quando foram vendidos. A
porca, essa não pareceu muito preocupada concentrando-se nas “leveduras” que
lhe colocavam na pia, lambuzando o focinho prazeirosamente sem sentir a presença
de quem quer que fosse. Aliás por que o faria, a sua vida era um regalo, comer
e dormir.
Bem, não era só isso também gostava de “fossar” no estrume, o que causava
cheiros muito pestilentos e desagraváveis, além de que obrigava a um maior
gasto de palha ou de sobrantes do pinhal. Mas como para tudo existe solução,
logo chegou o meu tio para lhe meter um arganel no focinho. Com auxílio a um
alicate espetava-lhe um ferro (tipo latão) meio espalmado mas comprido no
focinho, contorcendo-o de modo a que o animal não repetisse a gracinha de
revolver o estrume, pois se o fizesse teria dores.
(Alicate)
(Suíno com arganel)
O tempo ia
passando, as rotinas diárias cumpridas religiosamente para que o animal ficasse
bem cevado, para ser morto em Dezembro ou em Janeiro, quando predomina o frio e
existia menos probabilidade da carne se estragar. A minha mãe preparava já a
salgadeira, limpando-a meticulosamente para receber os presuntos e as pás do
porco, bem como a restante carne que ficaria ali acondicionada durante algum
tempo.
O dia da
matança aproximava-se, tendo-se já combinado com o “Zé da Geni”, que seria o
matador de serviço o dia e hora em que o animal seria morto e “desfeito”. Uma
questão de agenda direi eu já que naquela época, muitas pessoas na aldeia faziam
a criação do porco e o matador não tinha mãos a medir. Quanto ás ferramentas
que utilizava bastava-lhe uma corda para amarrar o focinho do animal com uma
laçada e algumas facas. Uma maior para introduzir na zona do pescoço do animal
que se prolongaria até atingir o coração com a ponta da mesma, matando-o. As
restantes facas seriam utilizadas para proceder à remoção do pelo do animal, após
ter sido lavado e para o desmanchar.
Tinha o dia
raiado gélido, rasgando os primeiros raios de sol as serras circundantes quando
o “Zé” chegou a minha casa para matar o porco, onde já me encontrava eu a minha
mãe; a minha irmã; o Manel; o Virgílio; o meu tio Manuel o meu vizinho Senhor
Aires. O Zé era muito prático, colocou mãos à obra e tratou de entrar na loja
sozinho munido apenas da corda, ouvindo momentos depois o animal a guinchar
desalmadamente. Sei que é um retrato cruel mas é esta a realidade a carne não
aparece no prato e os nossos filhos deveriam ver estes cenários tradicionais (sim porque agora as matanças são na maior
parte industriais e penso qua ali os animais não sofrem tanto bastando depois
irem ao talho comprar a carne) para saberem que a alimentação não cai do céu,
nem nasce nos supermercados.
Mas
continuando … logo depois surgia o Zé com o animal (diga-se que bem cevado com uns bons 190 Kg), o qual procurava (debatendo-se ferozmente), soltar-se da
laçada que o Zé lhe fez no focinho.
Após colocar o suíno junto ao banco de
madeira, eu segurei numa das patas traseiras e o Virgílio na outra, enquanto o
Manuel e o meu tio Manuel seguravam nas patas da frente, deitando à força o
animal, para facilitar a matança.
Escusado será
dizer que o animal esperneava em todas as direcções e era necessária bastante
força para o manter em cima do banco, para permitir ao matador enterrar-lhe a
faca no pescoço, para que o sangue começasse a escorrer para a bacia que
previamente a tinha mãe tinha preparado para aproveitar o sangue que depois
seria cozido e comido, após ser preparado com azeite, vinagre e alho (penso que eram estes os ingredientes
utilizados).
Quando a faca
foi enterrada o animal irrompeu o silêncio da povoação que se iria repetir
naquela e noutras manhãs com as matanças de outros animais, sobressaltando o
povoado, alarmando as aves que descansavam nos ramos das oliveiras situados nas
imediações.
O animal
debatia-se e o sangue saia em jorros, até se esvair completamente, parando
finalmente de se debater, findando para o mundo a vida deste animal que iria
alimentar uma família, sendo este o nobre propósito da sua curta existência.
O Zé retirou
depois a faca e a corda que amordaçava o porco e colocou um trocho de couve no
orifício que lhe havia feito, escorrendo agora um ínfimo fio de sangue das
entranhas do porco. Dizia ele que o sangue teria que escorrer bem para não se
espalhar pelo interior do animal.
Mecanicamente
o animal foi colocado em cima de umas tábuas, sendo depois removido com auxílio
a um bocado de palha enrolada os dejectos que tinha ainda nas tripas, o que não
eram muitas já que no dia anterior a minha mãe não havia alimentado o animal,
como se fazia nestas ocasiões.
Antes da
matança eu e a minha mãe já tínhamos ido ao monte recolher giestas com as quais
fazia-nos uma espécie de vassouras que seriam depois utilizadas para queimar o
pelo do porco (antes utilizávamos a palha
que era mais dispendiosa). Posteriormente passou-se a utilizar o maçarico
alimentado por uma botija de gás, mas sinceramente não gosto deste método, pois
a carne na minha opinião adquire gostos e propriedades que não se coaduna com
os métodos tradicionais, aos quais me havia habituado como era o caso de
utilizar a combustão natural (ainda que
possa ser apenas impressão minha, já que não me baseio em qualquer estudo).
Depois de
queimado o pelo do porco, era a hora de proceder à limpeza do mesmo, utilizando-se
para esse efeito pedras rugosas para deixar o animal bem limpo. A esse propósito
era frequente os mais velhos quando retiravam as “unhas” das patas do porco, meterem-nas
nos bolsos dos mais novos ou dos mais desprevenidos, tudo em tom jocoso mas de
mera brincadeira. Ou invés, diziam que era necessário ir buscar pedras
adequadas que poderiam ser encontradas em determinados locais, usualmente muito
longe quando tal não era necessário. Cheguei a ser enganado pelo menos uma vez,
acabando por ser um convívio divertido. Depois de limpo o Zé utilizava uma das
facas que trazia bem afiadas para remover o pelo que restasse do animal,
repetindo-se o procedimento, virando-se o animal, queimando-se o pelo do outro
lado; lavando-se com auxílio às pedras e remoção do pelo com a faca.
E pronto!
Depois de limpo transportava-mos o porco para o interior de uma adega ou para a
loja onde era pendurado numa biga de madeira e ali era aberto a meio,
removendo-se as tripas e a maior parte dos órgãos, processo feito com rigor e já
muitas vezes ensaiado pelo Zé, o que para ele não tinha segredos. Só no dia
seguinte procederia ao desmanche do animal.
(Porco pendurado)
A minha mãe dedicava-se depois ao lavar das tripas que seriam mais tarde utilizadas para fazer o tão apetecível fumeiro (alheiras; sapições; bucheiras e languiças),
aproveitando até o palaio e a bexiga do porco.
Preparava o
sangue do animal, que cozia como referi antes e comia-se partes do fígado e
alguns rijões, enquanto se conversava animadamente, acompanhado por uns copos
de vinho morangueiro, que retirávamos directamente da pipa.
(Sangue já confecionado)
A animação era
curta, pois era necessário ir ajudar na matança do porco do Senhor Aires, meu
vizinho, repetindo-se todo o processo. Era assim a vida nas aldeias, um espírito
de entre-ajuda e um convívio puro e salutar, do qual sinto uma imensa saudade.
No dia
seguinte o Zé regressava para desmanchar o porco, separando as suas diversas
partes, cortando os presuntos, às pás e as costelas, deixando-o devidamente
esquartejado, colocando as partes maiores na salgadeira o que se fazia de
imediato.
Quanto às
gorduras eram transformadas em banha utilizando-se normalmente as panelas de
ferro para esse propósito. Os lombos, as costeletas e o fígado eram
também devidamente aproveitados e destes faziam-se os rojões, que eram depois
guardados em panelas apropriadas de cerâmica, cobertos de banha e que seriam
"banqueteados" no decorrer do ano que se avizinhava.
Quanto às
tripas e a feitura das alheiras oportunamente escreverei sobre esse tema, mas
posso afiançar que as gentes da aldeia faziam e nalguns casos felizmente ainda fazem
um fumeiro de grande qualidade, na minha opinião muito superior aquele que é
feito actualmente em Mirandela, visto que nalguns casos é já mecanizado e
procura-se a obtenção do lucro e não a qualidade do produto. No entanto
persistem ainda pessoas que fazem o fumeiro manualmente comercializando-o e
esse sim de melhor qualidade, visto que na sua composição se encontra maior
quantidade de carne de porco e galinha. Aliás, os restos das carnes
mais magras eram cortados em pequenos pedaços, temperavam-se e serviam para confeccionar
as "chouriças", que eram depois utilizadas na alimentação diária,
porque tinham de durar o máximo tempo possível.
Deixo-lhes
aqui as minhas memórias sobre a matança do porco e a sua criação nos meus
tempos de infância e adolescência.
Complemento
com outros artigos que podem achar interessantes …
O
Porco (Criação e matança)
1 – As espécies e a domesticação de suínos
Perde-se na bruma do tempo a domesticação de suínos,
pois pensa-se que teria tido início por volta do V milénio AC, pertencendo este
desiderato aos chineses, passando a partir daí a serem criados em chiqueiros
domésticos, dando-lhe toda a alimentação necessária ao seu crescimento e
engorda.
Deste modo, defende-se que o suíno asiático só teria
sido conhecido pelos europeus, já depois de domesticado.
A criação e abate de suínos destinados à alimentação
humana foi sofrendo ao longo do tempo várias "modas", não sendo de
todo consensual em termos universais.
Na antiguidade, tanto o profeta Moisés como Maomé,
proibiram o uso da carne de suíno na alimentação humana, argumentando que a
mesma seria prejudicial à saúde. Por seu lado, os gregos, criavam suínos
destinando-os a sacrifícios consagrados aos deuses, elevando-os, assim, ao
patamar do mitológico.
Ao invés, os romanos foram grandes criadores e
consumidores de carne de porco. Por outro lado, sabemos que os Muçulmanos
continuam ainda hoje a não comer carne de porco, respeitando a proibição
ancestral do profeta Maomé.
Apesar de todas as contradições e divergências acerca
deste assunto, o certo é que a espécie suína nas suas variantes: asiática
(orelhas curtas e erectas, fonte plana e larga); céltica (perfil côncavo,
orelha longas e caídas, fonte larga e chata); e ibérica (perfil subcôncavo, orelhas
médias e horizontais, fonte estreita) desenvolveu-se e prosperou, expandindo-se
a suinicultura desde a antiguidade até ao nosso tempo por quase todo o mundo,
variando, obviamente, a sua criação e abate de lugar para lugar. As excepções a
esta regra são alguns países de África e do Médio Oriente, em consequência,
sobretudo, da predominância da religião islâmica.
2 – A criação e utilização da carne de suíno em
Portugal
Também em Portugal a criação de porcos e o seu abate
para a dieta humana, remonta a tempos imemoriais, a muito antes da fundação da
nacionalidade, já que, como foi dito, os romanos que também por aqui andaram,
utilizaram-na com grande abundância na sua alimentação, confeccionando com ela
grandes banquetes.
Depois, a utilização da carne suína foi-se
generalizando, tornando-a indispensável à sobrevivência das populações,
sobretudo as do mundo rural, mas não só.
Assim, podemos afirmar que a criação de suínos
domésticos foi crescendo gradualmente e, à medida que os séculos foram
decorrendo, cada vez mais se generalizou o seu consumo, ligando-se, inclusive,
a sua criação e abate às tradições e costumes locais, tornando-se a carne de
porco no alimento primário das populações. Foi deste modo que, desde o Minho ao
Algarve, passando pelos arquipélagos da Madeira, Açores e Cabo Verde, se foi
expandindo a tradição de criar e abate de suínos, utilizando a sua carne na
alimentação diária e inscrevendo os seus rituais nas tradições e costumes
locais.
Veja-se, e a título de mero exemplo paradigmático,
como é descrito por Ermelindo Ávila, um historiador do quotidiano local da ilha
do Pico, Açores, o cerimonial de uma "matança" de porco. Citemos.
"O dia da "matança" era um dia grande
para toda a gente. Graúdos e miúdos viviam-no com entusiasmo e alegria. Era o
dia em que a família e os amigos se juntavam, especialmente para a ceia, onde
eram servidos os mais diversos pratos, preparados com os fígados, as morcelas,
os torresmos de lombo. Uma fartura imensa. A linguiça era um dos petiscos mais
apetecidos. Eram "arrumadas" em recipientes de barro e cobertas de
banha de porco para serem utilizadas durante o ano.
Nos dias de "matança" até as crianças tinham
permissão de faltar à escola". Fim de citação.
Também de Trás-os-Montes ao Algarve, a criação e abate
de suínos foi igualmente importante, podendo ter sido apenas diferente no modo
como eram feitas, pois certamente variavam de região para região.
Porém, hoje, seguramente já não é assim, pois a
criação de suínos domésticos ou está extinta ou em vias de o ser, mantendo-se
contudo a importância da carne de porco na dieta dos portugueses, mas criados e
abatidos em moldes industriais, comprando-se a sua carne e derivados nos talhos
que abundam por todas as vilas e cidades do nosso país.
Tal como o imortal poeta Luís de Camões um dia
afirmou, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", as sociedades
estão em constante mudança. Foi o que aconteceu e, certamente, vai continuar a
acontecer, felizmente.
3 – A criação e as matanças de porco no nosso concelho
No nosso concelho, como um espaço geográfico de parcos
recursos endógenos, a criação de suínos domésticos assumiu desde tempos remotos
uma grande importância, pois a sua carne foi o suporte da alimentação das
nossas gentes durante muitos séculos.
Deste modo, a criação do "porco", tornou-se
num hábito milenar, atravessou muitas gerações e chegou até à década de 70 do
séc. XX, inscrevendo-se também no imaginário colectivo concelhio.
De facto, habitando uma terra agreste e pobre, a
criação dos porcos domésticos era determinante para o sustento dos agregados
familiares, não admira, pois, que se revestisse de primordial relevância.
Curiosamente, ela assumiu não só a importância intrínseca emergente da
necessidade absoluta que os serranos tinham dela para poderem sobreviver, mas
também, e por via disso, funcionou como hierarquização social, pois dependia do
número de porcos criados e abatidos anualmente, a importância social e
económica das famílias.
Assim, à medida que a carne de porco se tornava
indispensável para o sustento das populações serranas, foi-se enraizando a
ideia desse facto, aceitando-se que as famílias mais pobres matavam apenas um
porco por ano; as remediadas matavam dois; e as mais abastadas três ou quatro,
fazendo-se, desse modo, a tal hierarquização social de que falámos.
Certamente que os rituais ligados à criação e
"matança" dos porcos não foram sempre iguais, já que iam passando de
geração em geração.
Na década de 60 do pretérito século, a criação de
porcos domésticos mantinha-se pujante, pois praticamente não havia família que
não criasse o " seu porco". Eram comprados na feira local ou aos
"porqueiros" ambulantes. Recordamos, a título de exemplo, o
"porqueiro" do Vale Covo, uma aldeola situada junto da Pampilhosa, na
encosta das Aldeias, se calhar hoje deserta, que na nossa meninice, calcorreava
veredas e montes, com varas de leitões que ia vendendo por muitas aldeias do
concelho. Uma vida difícil, por certo, mas era preciso ganhar o pão de cada
dia.
Depois eram tratados com a possível abundância (restos
de comida, géneros agrícolas: batata, abóbora e legumes), de modo a que o seu
"engordamento" máximo estivesse conseguido nos meses de
Dezembro/Janeiro de cada ano.
Acerca da boa vida do "porco", que só comia
e dormia, não resisto a deixar aqui uma fábula que muitas vezes me foi repetida
durante a minha meninice:
"Um pequeno proprietário serrano criava
habitualmente o seu porco num chiqueiro contíguo ao curral do seu burro. Do seu
lugar privilegiado, todos os dias o animal observava pela frecha da porta a dona
da casa trazendo, logo pela manhã, a refeição do porco, enquanto ele – pobre
burro – cheio de fome, só tarde e a más horas lhe traziam a dejua.
E este ritual, triste para o "burrito",
repetiu-se inexoravelmente durante um ano. Todavia, numa madrugada fria de
Dezembro, o burro foi desperto do seu sono tranquilo pelo "chiar"
estridente e assustado do seu vizinho porco. Levantou-se, abeirou-se da porta,
espreitou pelas frechas e eis que à sua frente lhe cenário de morte: o porco,
inerte, estendido sobre a esterqueira!
Então, o burrito, esfregando as mãos de contente,
exclamou bem alto:
- Eu logo
vi que o muito comer e o pouco trabalhar em alguma coisa havia de vir a
dar!!!"
Uma vez conseguida a engorda do porco, marcava-se a
"matança", representando um dia diferente e de festa para adultos e
crianças. Antecipadamente, cortavam-se as carquejas para secarem e, assim,
serem o combustível para "chamuscar" o porco ou porcos, convidando-se
o "matador" e os ajudantes, estes tendo a função de o amarrar e
trazê-lo até à "banca" onde seria morto, num ritual, temos de o
dizer, violento e doloroso para o animal.
Uma vez abatido e aproveitado o sangue para a
confecção das futuras morcelas ou para coalhar e mais tarde guizar, o mesmo era
"chamuscado", barbeado com artefactos artesanais, limpo e
transportado para uma loja apropriada, onde era dependurado pelo
"chambaril" (um artefacto de madeira feito manualmente e que segurava
o porco pelos membros traseiros), sendo logo depositadas as tripas em
recipiente de cerâmica apropriado, para depois serem devidamente lavadas em
água corrente (normalmente nas levadas ou ribeiras mais próximas), para de
seguida serem utilizadas na confecção das "chouriças". Retiravam-se
alguns "miúdos" do porco para serem confeccionados no almoço oferecido
ao matador, seus ajudantes e a alguns amigos.
Normalmente, no dia seguinte, o porco era
"desmanchado" e separadas as suas diversas partes; as gorduras eram
transformadas em banha, na panela de ferro; os lombos, as costeletas e o fígado
em torresmos, depois guardados cuidadosamente em panelas apropriadas de
cerâmica, cobertos de banha e que seriam "banquetes apetecidos" ao
longo do ano, utilizando-se em refeições especiais – os torresmos de lombo
misturados com ovos só eram servidos a amigos ou familiares especiais! -; os
toucinhos e os presuntos, que eram salgados e guardados na
"salgadeira" e que seriam o sustento parcial da casa até à próxima
matança. E as donas de casa que não conseguissem que a carne do porco não se
prolongasse durante o ano, eram, não raras vezes, apelidadas de desgovernadas!
Os restos das carnes mais magras cortavam-se em
pequenos pedaços, temperavam-se e confeccionavam-se depois as tradicionais
"chouriças", secando-se nos fumeiros, sendo guardadas, a exemplo dos
torresmos de lombo, pois só eram utilizadas moderamente na alimentação diária,
porque tinham de durar o máximo tempo possível.
Eram, assim, as famílias serranas, iam guardando hoje,
aquilo que lhes podia fazer falta amanhã!
Mas todo este ritual das "matanças" esteve
sempre associado a tradições e costumes que privilegiavam a fraternidade e a
amizade entre as famílias. Daí que a "cachola" (refeição colectiva
familiar para onde eram convidados os familiares e os amigos mais próximos),
fechasse todo este cerimonial, pois era normalmente feita dois ou três dias
depois da matança.
Assim, sendo pretexto para servir de reunião familiar
alargada, a "cachola" tinha, regra geral, (variava de aldeia para
aldeia) a seguinte ementa:
- Sopa
de couve com carne de porco entremeada e alguns ossos;
- Um
guisado dos ossos da "cabeçada", com batatas;
- Torresmos
de lombo acompanhados com broa de milho;
- O
sangue do porco guisado com cebola;
- Arroz
doce, como sobremesa.
Como procurámos, embora de uma forma incipiente,
demonstrar, a criação e a matança de suínos domésticos, foi relevante no nosso
país e no nosso concelho durante muitos séculos, estando ligadas a costumes e
tradições ancestrais.
Hoje, praticamente estes eventos estão já na gaveta do
esquecimento em consequência das mudanças sociais entretanto verificadas e,
porque não dizê-lo, à melhoria da qualidade de vida das nossas gentes.
Achamos, porém, pela importância que tiveram, que as
não devemos riscar da nossa memória colectiva, antes devem ser recriadas aqui e
ali, no sentido de manter vivas recordações de um passado recente e que poderão
servir de "ponte cultural" entre as gerações presentes e futuras.
É isso que, sinceramente, aqui auguramos.
como sou de uma aldeia de valpaços não digo que as minhas são melhores não falo na qualidade dos outros sem provar as tuas chico ferreira
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