sábado, 11 de agosto de 2012

Apanha da azeitona

(Apanha da azeitona em Sanfins)

Os primeiros raios de sol ainda não haviam brotado e já se desloca o lavrador para os campos, naqueles dias invernosos e frios, acarinhado pelas terras transmontanas que o miram altivas nos seus tronos intemporais. 

Havia já comido a faustosa malga da sopa, regada pelo azeite e a côdea do pão, aconchegando o estômago após uma noite de sono, envolta nos cobertores grossos que o protegem dos rigores do inverno. 

Preparou-se como sempre o faz para a labuta diária, vestindo roupas quentes que lhe aquecem o corpo, levando a mulher o almoço e o farnel nas cestas, embrulhados numa toalha (não faltando o garrafão de vinho de 5 litros e água – não fosse o caso de não haver nenhuma mina de água; uma nascente ou um ribeiro) para os restantes trabalhadores. 

Após preparar as varas; os toldes e os sacos são carregados no cavalo, que acomodou atempadamente, reúne-se à “camarada”, deslocando-se todos como disse para os campos, transportando as compridas varas ao ombro como de um fuzil se trata-se, prontos para a luta diária. 

Vão assim à torna-jeira ou à torna mão, como habitualmente é referido (ou era por terras Nordestinas) na maior parte dos casos. 

Nos tempos mais recuados, nos anos da minha mocidade assim era. Hoje neste dia de trabalho a que aqui aludo, o lavrador trabalhava para si juntamente com os outros lavradores e amanhã pagava o trabalho dos outros com o seu suor, como era aliás apanágio de todos. 

Faço apenas aqui um reparo. Havia honradez no escrupuloso cumprimento da palavra dada e naturalmente era sabido que quem trabalhava para outrem recebia o mesmo tempo de trabalho de volta, conseguindo-se assim fazer as tarefas agrícolas que necessitavam de muita mão-de-obra como era o caso da recolha da azeitona. 

As obrigações de todos, eram cumpridas religiosamente e previamente combinadas no Eiró ou noutros locais da aldeia. A honra que em tempos era lei, ainda o foi até recentemente em todos os homens criados com esse valor, sendo sugada pela busca desenfreada dos bens materiais. 

Era assim a vida laboriosa na aldeia, fosse o caso da apanha da azeitona; das vindimas; das cegadas, tudo era feito em grande parte dos casos em comunidade. Era aliás uma vida intensa e desgastante, como o é todo o trabalho braçal, mas feito sempre com um sorriso nos lábios! 

A conversa animada, as cantorias melodiosas das mulheres mais afoitas para as cantigas populares, rasgavam o raiar do dia, convidando os pássaros madrugadores a acompanhar a sinfonia, esvoaçando em belas manobras chilreando alegremente com uma vivacidade que apenas a natureza lhes poderia dar. 

Chegados ao olival, iniciava-se a labuta, estendendo-se os “toldes”, de dimensões consideráveis, num mar irregular, banhado pelas pequenas pedras e pelos montículos de terra, usualmente um de cada lado da oliveira. Os homens iniciavam a vareja, fustigando a oliveira de cima para baixo, obrigando a azeitona a desprender-se da ramagem, onde se desenvolvera, enriquecida pela seiva da sua protectora. Algumas azeitonas, agarravam-se freneticamente à oliveira, temendo perder o seu berço. Essas azeitonas mais “teimosas” o varejador de uma forma eficaz, meneava a vara, rodopiando-a, desprendendo-a ardilosamente da oliveira. 

Iam-se assim desprendendo as azeitonas da oliveira, amadurecidas pela natureza e prontas para serem sacrificadas ao deleite dos homens, de onde mais tarde seria extraído o azeite. 

Eram recebidas no toldo, onde se aglomeravam, sendo depois ensacadas, após retirada a ramagem em excesso e crivadas. Sim, pois naquela altura ainda me recorda de ser crivava a azeitona para seguir limpa para a cooperativa de Valpaços. Surgiam já na aldeia os crivos grandes em metal ou feitos pela mão do lavrador mais perspicaz ou adquiridas em lojas de ferragens e de material agrícola. 

Havia no entanto, como sempre existe em tantas outras coisas, as azeitonas teimosas que por se acharem insultadas, pela vara que as açoitam, voavam para longe do tolde, que se estendia acolhedoramente pelo chão, chamando-as como de uma teia de aranha se trata-se. 

Apesar dessa graça, nem mesmos essas se livravam das mãos das mulheres que meticulosamente as apanhavam e as colocavam nos baldes. 

Mesmo as que miraculosamente escapavam eram muitas vezes recolhidas pelos rebuscadores. 

Sim, também eu cheguei a ir ao “rebusco” para ganhar uns trocos. Naquela época tudo era aproveitável. Hoje em dia a azeitona que foge do manto de veludo (tolde ou toldo como era denominado), acaba abandonada à sua sorte, apodrecendo no solo, alimentando-o. 

Iam-se enchendo os sacos com a azeitona, salpicando o olival aqui e ali, ficando encarregues dois ou três homens por carrega-los no cavalo, fazendo a carga que depois era transportada para a aldeia. Os tractores foram aparecendo facilitando o transporte das cargas para a casa dos lavradores, onde era depois limpa (o que mais tarde passou a ser feito nas próprias cooperativas). 

Uma das partes mais custosas na apanha da azeitona eram os dias de frio cortante, algumas vezes acompanhadas pelo frio gélido aclamado pelas geadas, que nos roíam os ossos. Os membros superiores e inferiores, nas sua partes mais longínquas, suplicavam por calor e logo se fazia uma fogueira para aquecer as mãos e os pés destes lutadores rurais, pois muitas vezes o simples esforço físico e o acelerar braçal não era suficiente para manter o corpo aquecido, ainda que se usasse mais um par de meias. 

No intervalo da labuta, vinha o repasto tão aguardado, regado usualmente pelo vinho tinto, um néctar de fazer inveja às melhores castas plantadas pelo deus baco no olimpo. Acompanhava o repasto as anedotas; os contos e as cantigas ancestrais das mulheres que nos confortavam e preparavam para mais umas horas de labuta! 

Depois de regalados, eis que era hora de voltar ao trabalho até o términos do dia, caso o olival assim o ditasse. Depois do almoço era sempre mais custoso iniciar-se o trabalho, pois o corpo pedia descanso … 

Cansados por mais um dia de apanha de azeitona, a “camarada” (grupo de pessoas), deslocava-se pesadamente para suas casas com a sensação de dever cumprido e apenas mais um, dia de labuta, no resto das suas vidas. 

Amanhã o dia renasceria … mais cinzento; mais solarengo ou gélido, mas a vida continuava, pois os Olivais brindavam os campos, em anos mais generosos, com muita azeitona, que carecia ser recolhida e transformada, fornecendo ao lavrador o azeite para “regar” as suas couves; grelos; batatas; bacalhau, ou outros alimentos nos dias que se seguiriam. 

Não enriquecem os lavradores com o suor do seu trabalho mas sempre conseguem ganhar algum dinheiro para custear a sua vivência diária, alimentando a família, isto quando a natureza não é madrasta. 

Assim vejo a apanha da azeitona … 




O precioso néctar 


Recorda-me que a azeitona chegou a ser entregue em pequenos lagares familiares da aldeia, como foi o caso do lagar do Senhor Alberto França, pessoa que sempre me brindou com a sua empatia e generosidade. 

Actualmente a azeitona é entregue nas várias cooperativas ou noutros locais equipados para fazer a transformação da azeitona em azeite. 

Achava graça ao modo de funcionamento do lagar, apesar de nunca o ter entendido muito bem (haverá na aldeia quem conheça melhor que ninguém o funcionamento de um lagar de azeite como é o caso do meu amigo Luís Cavaleiro), mas na verdade a preocupação de um rapaz da minha idade não era tornar-me especialista em tal matéria. 

Aliás o que me recorda melhor é o facto de molhar uma côdea de pão no azeite cristalino e comer aquela côdea com vigor! 





Lagar de Azeite 

Mas afinal como funciona o lagar de azeite? Pois como também não me recordava de todo o procedimento fiz umas pesquisas que partilho aqui (desculpem se houver alguma imprecisão): 

O lagar do Azeite é um engenho em que se processa a transformação da Azeitona em Azeite.
Depois de apanhada a azeitona é limpa, lavada, e entra para o moinho. O moinho tradicional era composto por duas pedras que esmagavam a azeitona até ficar numa papa homogênea. 

Posteriormente os capachos que contêm a pasta da azeitona são colocados na prensa, começando aqui o processo de desprensagem que faz com que todo o líquido contido na pasta seja expelido. 

O líquido retirado pela prensagem é depois descarregado em tinas onde está a água regulada a uma determinada temperatura. Aqui procedesse à separação do azeite da sangra. O azeite como é mais gorduroso; fino e leve, emerge e verte para um compartimento próprio, enquanto a sangra mais pesada vai para outro. 

Resta ainda a baga, os restos da pasta que ficaram dentro da prensa no dentro dos capachos. 

Antigamente essas bagas eram utilizadas para alimentar os porcos (ou recos como se diz também na minha aldeia); para fazer lume, já que também era usada como combustível para aquecer as caldeiras do Lagar de Azeite. 


Origem da Oliveira e sua história 



A origem da oliveira, na sua forma primitiva, remonta à Era Terciária, anterior portanto ao aparecimento do homem, e situa-se na Ásia Menor, provavelmente na Síria ou na Palestina, regiões onde foram descobertos vestígios de instalações de produção de azeite e fragmentos de vasos datados do começo da Idade do Bronze. Contudo, em toda a bacia do Mediterrâneo foram encontradas folhas de oliveira fossilizadas, datadas do Paleolítico e do Neolítico, sendo também pesquisada a sua origem ao sul do Cáucaso, nos altos planos do irão.


O uso do azeite na Antiguidade 
Por volta de 3000 anos antes de Cristo, a oliveira já seria cultivada por todo o Crescente Fértil. Sabe-se, no entanto, que, há mais de 6 mil anos, o azeite era usado pelos povos da Mesopotâmia como um protector do frio e para o enfrentamento das batalhas, ocasiões em que as pessoas se untavam dele.
De acordo com a Bíblia, havia comércio de azeite entre os negociantes da cidade de Tiro, que, provavelmente, o exportavam para o Egito, onde as oliveiras, na maior parte, não oferecem um produto de boa qualidade. Há também informações extraídas do Antigo Testamento bíblico de que teria sido na quantidade de 20.000 batos (2 Crônicas 2:10), ou 20 coros (1 Reis 5:11), o azeite fornecido por Salomão a Hirão, sendo que o comércio direto desta produção era, também, sustentado entre o Egito e a Israel (1 Reis 5:11; 2 Crônicas 2:10-15; Isaías 30:6 e 57.9; Ezequiel 27:17; Oséias 12:1).
A propagação da cultura do azeite pelas demais regiões mediterrânea provavelmente deve ter ocorrido por meio dos fenícios e dos gregos. Assim, já na Grécia antiga se cultivava a oliveira, bem como a vinha. E, desde o século VII a.C., o óleo de oliva começou a ser investigado pelos filósofos, médicos e historiadores da época em razão de suas propriedades benéficas ao ser humano.
Os gregos e os romanos sem dúvida descobriram várias aplicações do azeite, com suas múltiplas utilizações na culinária, como medicamento, unguento ou bálsamo, perfume, combustível para iluminação, lubrificante de alfaias e impermeabilizante de tecidos.
Além disso, o azeite é mencionado em quase todas as religiões da Antiguidade, havendo inúmeras lendasmitos a respeito. Muitas das vezes a oliveira era considerada símbolo de sabedoria, paz, abundância e glória para os povos.

O azeite nas religiões antigas
Para os egípcios, o cultivo da oliveira teria sido ensinado por Ísis; os gregos e romanos também acreditavam que a origem de tal cultura teria sido uma dádiva dos seus respectivos deuses.
De acordo com a mitologia grega, ao disputar as terras do que é hoje a cidade de Atenas, o deus Posídon, com um golpe de seu tridente, teria feito brotar um belo e forte cavalo e que a deusa Atenas trouxe uma oliveira capaz de produzir óleo para iluminar a noite, suavizar a dor dos feridos e de servir como um alimento precioso, rico em sabor e energia.
Na Eneida, Virgílio faz uma menção ao azeite e à oliveira: "E com um ramo de oliveira o homem se purifica totalmente".
Rômulo e Remo, considerados descendentes dos deuses e fundadores da cidade de Roma, teriam visto a luz do dia pela primeira vez debaixo dos galhos da oliveira.
Todavia, entre os judeus o azeite teve uma grande importância nos cultos quanto ao oferecimento de sacrifícios a Deus, simbolizando a sua presença entre os homens.

A simbologia do azeite na Bíblia
Na Bíblia, o azeite é utilizado como símbolo da presença do Espírito Santo (Deus).
Em Gênesis, quando as águas do dilúvio tinham cessado e a arca ainda navegava sobre as águas, o patriarca Noé teria soltado uma pomba que retornou trazendo um ramo de oliveira.
Jacó, ao ter duas experiências sobrenaturais com Deus, em Betel, em ambas as vezes colocou no local uma coluna de pedra sobre a qual derramou azeite. (Gênesis 28:18 e 35:14)
Os judeus utilizavam o azeite nos seus sacrifícios e também como uma divina unção que era misturada com perfumes raros. Usava-se, portanto, o azeite na consagração dos sacerdotes (Êxodo 29:2-23; Levítico 6:15-21), no sacrifício diário (Êxodo 29:40), na purificação dos leprosos (Levítico 14:10-18 e 21:24-28), e no complemento do voto dos nazireus (Números 6:15).
Quando alguém apresentar ao Senhor uma oblação como oferta, a sua oblação será de flor de farinha; derramará sobre ela azeite, ajuntando também incenso. (Levítico 2:1)
Pode-se afirmar que a Torah previa três tipos de ofertas de manjares que deveriam ser acompanhadas com azeite e sem fermento, as quais eram: 1) flor de farinha com azeite e incenso; 2) bolos cozidos ou obreias (bolos muito finos) untadas com azeite; 3) grãos de cereais tostados com azeite e incenso. E, enquanto a ausência de fermento simbolizava a abstinência do pecado, o azeite representaria a presença de Deus. Parte das ofertas era então queimada no altar como sacrifício a Deus. Certas ofertas, contudo, deviam efetuar-se sem aquele óleo, como, por exemplo, as que eram feitas para expiação do pecado (Levítico 5:11) e por causa de ciúmes (Números 5:15).
Os judeus também empregavam o azeite para friccionar o corpo, depois do banho, ou antes de uma ocasião festiva, mas em tempo de luto, ou de alguma calamidade, abstinham-se de usá-lo.
O azeite também era reconhecido como um medicamento entre os judeus (Isaías 1:6; Marcos 6:13; e Tiago 5:14). No Evangelho segundo Lucas 10:34, o "bom samaritano" unge as feridas do homem que tinha sido atacado pelos salteadores com vinho e azeite. O azeite, nas feridas, era conhecido por ajudar a cicatrizar.
Pode-se dizer que na cultura judaica o azeite indicava o sentimento de alegria, ao passo que a sua falta denunciava tristeza, ou humilhação.
Antes de sua prisão, Jesus passou momentos agonizando no Getsêmani, ou Jardim das Oliveiras, situado nos arredores da Jerusalém antiga. O nome Getsêmani significa lagar do azeite. A escolha do local trazia com exatidão o que estava acontecendo com Jesus momentos antes de ser crucificado, quando iria ser sacrificado e esmagado como uma azeitona, a fim de que a humanidade pudesse receber o Espírito Santo em seus corações. 


2 comentários:

  1. Parabéns pelo seu texto, muito instrutivo! Eu ainda cheguei a participar na apanha da azeitona quando o meu avô era vivo, na terra da minha mãe, uma aldeia relativamente perto de Valpaços, a Ferradosa. Adoro as paisagens dos olivais a perder de vista e tenho pena que agora as terras comecem a ficar abandonadas, à medida que o anciãos vão partindo deste mundo...

    Uma vez mais, parabéns e obrigada por partilhar esses seus conhecimentos.

    S.

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  2. Eu é que lhe agradeço a sua visita e a partilha das suas memórias. Sinta-se à vontade para visitar este Blog de um filho das terras Transmontanas.
    Um abraço!

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